sábado, 28 de julho de 2007

DE COMO SALVAR A UNIVERSIDADE PÚBLICA DELA MESMA - Parte II

Héctor Ricardo Leis e Selvino J. Assmann

Considerando as perversões e os paradoxos apontados na Parte I deste artigo (para quem não leu o número anterior de Floripa Total, pode procurar o texto no site http://www.floripatotal.com/), pedir o simples aumento do orçamento das universidades públicas (reivindicação constante tanto dos reitores quanto dos sindicatos de docentes e de servidores técnico-administrativos, e até mesmo das entidades estudantis) não significa necessariamente construir o futuro. A falta de atenção para a realidade social e econômica do país torna a universidade pública brasileira produtora de um quantum considerável de injustiça social e de desempregados qualificados. Reclamar do orçamento da universidade pública ou dos salários dos professores no atual contexto (apesar da justiça das reivindicações destes, sobretudo quando comparamos o salário dos docentes com o de outros funcionários de menor qualificação e maiores rendimentos de outras áreas da administração pública), pode ser mais um recurso para encobrir a inércia acadêmica das autoridades, e ser expressão de certo cinismo e/ou ingenuidade por parte dos professores.

No entanto, sair dessa encruzilhada não é nada fácil. A universidade pública gerou dentro de si e ao seu redor fortes entraves para inviabilizar qualquer reforma que não seja para manter o status quo. Por mais que se deva lutar pela democratização do acesso ao ensino superior, não se pode confundir esta luta com o que se denomina de democratização da universidade pública e gratuita. Assim, pensamos que o principal desses entraves internos é um democratismo crescente que perpassa a atual universidade pública. Os atores das universidades públicas desenvolveram uma concepção corporativa do princípio da autonomia. O art. 207 da Constituição brasileira de 1988 estabelece que “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial...”. Mas também no art. 206 estabelece, entre outros princípios, que o ensino será ministrado com base na: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; ... gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; ... gestão democrática do ensino público, na forma da lei.”

Não se trata de negar nenhum desses princípios, mas de compatibilizá-los em função dos interesses da nação como um todo. A autonomia foi outorgada historicamente às universidades para preservá-las dos avanços ou intromissões do Estado, em função de interesses conjunturais dos grupos governantes, contra o necessário exercício da liberdade acadêmica dos professores. Mas no Brasil, embora essa liberdade esteja sendo preservada, nos últimos anos a autonomia não tem servido para a universidade realizar as necessárias reformas e ajustes periódicos de sua proposta de ensino e pesquisa. Enquanto os governantes e o próprio Estado têm dificuldades ou desinteresse em formular um projeto nacional, permitindo assim que as instituições públicas não tenham qualquer compromisso com um projeto nacional, a universidade pública não só não se propõe contribuir para formular ela mesma um projeto nacional de ciência e tecnologia, mas fica presa na rede de interesses corporativos que se amparam no suposto exercício democrático de sua gestão para defender as posições adquiridas dos que já estão dentro, obturando uma representação mais universal que inclua os interesses dos que estão de fora: não apenas dos alunos potenciais, mas do povo em geral, que espera que a universidade atenda ao desenvolvimento do país, gerando, por exemplo, uma maciça oferta de vagas na área de ciência e tecnologia.
Se a luta pela autonomia um tempo significava luta por maior independência da vida acadêmica em relação à ingerência externa (anos 60 e 70), levando depois a que se transformasse a universidade pública em torre de marfim para acolher a classe média e rica, como ocorreu durante os governos militares, lembre-se também que, paradoxalmente, esta luta política acabou contribuindo para politizar praticamente todas as relações internas à vida acadêmica: o aumento de importância dos movimentos docentes e discentes, a departamentalização de toda atividade docente, a burocratização crescente, contribuíram para que diminuísse a importância do trabalho dos docentes como intelectuais que se preocupam em compreender a realidade e apresentar novas perguntas e novas respostas teóricas e práticas. A politização cada vez mais exasperada das decisões acadêmicas não colaborou para maior vinculação entre universidade e mundo, e sim para um maior distanciamento. Dessa forma, a politização da vida acadêmica levou a um enfraquecimento da importância política da universidade na sociedade brasileira. Recorrendo a uma distinção clássica entre poder político poder ideológico, poder-se-ia dizer que o critério para legitimar o exercício do poder ideológico deveria ser a verdade ou a busca de uma verdade objetiva e universalizável, enquanto o poder político deveria ser marcado pela liberdade de opinião e pela igualdade dos que opinam como cidadãos, e não como cientistas e intelectuais. Não se pode sem mais decidir pelo voto de todos qual é o melhor saber, e qual o melhor projeto acadêmico para a universidade, por mais que sempre devamos retomar o antigo debate sobre a distinção e a relação entre doxa(opinião) e episteme (verdade).

A reivindicação da autonomia não pode servir para que a universidade se feche em si mesma, tornando-a uma instituição que se preocupa só consigo mesma, independente do que acontece no todo social, ou que fica até proibida de pensar na sociedade em que se insere. Não é a autonomia como tal que garante a qualidade da universidade. Se assim fosse, deveríamos dizer que as universidades privadas, mais autônomas em sua gestão, são as de maior qualidade. Certamente isso não ocorre no Brasil, pois as universidades mais autônomas são as privadas, que não são por isso exemplo de qualidade. Nem são as universidades privadas as que se preocupam com a construção de um projeto nacional, embora sejam em geral mais ágeis para se inovarem na sua gestão e na criação de novos cursos.

Aliás, aqui há outro problema: tem havido no Brasil nos últimos anos um incremento da pós-graduação, cujos cursos são avaliados com maior rigor, e cuja existência contribui para a maior qualidade das universidades públicas. Contudo, nas universidades públicas, que tem a grande maioria dos cursos de pós-graduação de qualidade, se passou a menosprezar os cursos de graduação e o trabalho docente nestes cursos, por mais que se procure abrir novas universidades ou novos campi, ou se estimule o ensino a distância. Além disso, parece haver maior condescendência dos órgãos oficiais para que nas instituições privadas de ensino superior haja uma desproporção cada vez maior entre cursos de graduação e cursos de pós-graduação, sem que se exija, neste caso, por exemplo, a criação de cursos cujo funcionamento exige maior investimento em laboratório, sanando a desproporção entre cursos mais “baratos” e cursos na área de ciências básicas e de tecnologia.

Em perspectiva semelhante, por que as universidades públicas brasileiras, por exemplo, não redistribuem seus recursos e esforços para multiplicar por 10 as vagas de seus colégios de aplicação de ensino médio e fundamental, zelando para que estes voltem a ser de excelência, como já foram no passado? Desta forma poderiam entrar pela porta grande do vestibular os alunos pobres que tenham suficiente mérito. Pelo contrário, a autonomia tem servido nos últimos anos para quase esquecer a existência dos colégios de aplicação, tornando assim necessário pensar em sistema de cotas para o ingresso na universidade pública, que podem acarretar um aviltamento ainda maior da qualidade do ensino atual. Por que as universidades públicas não têm realizado reformas tendentes a aumentar a proporção de vagas em cursos curtos de vocação interdisciplinar em áreas científico-técnicas? Mas não; a autonomia tem servido para os docentes se entrincheirarem nas defesas dos cursos tradicionais de seus departamentos e centros, contra os interesses dos alunos pobres que ficam de fora.
O democratismo tem permitido a utilização do conceito constitucional da “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” para fins corporativos. Na maioria das universidades federais, por exemplo, nas quais tanto se defende o “estado de direito” como mínimo necessário para haver democracia, na hora de escolher reitores ou diretores de centro se produz um curioso esquecimento da parte que diz “na forma da lei”, para introduzir uma representação corporativa que desqualifica a essência da instituição universitária. Parece não importar a ninguém que “a forma da lei” estabelece que o 70% do peso da eleição do reitor descansa no voto dos professores. Na hora da eleição, o democratismo exige que a representação seja tripartite entre professores, alunos e servidores técnico-administrativos, ou mesmo por voto universal (de acordo com a fórmula “um homem, um voto”), onde todos se igualam, fazendo com que assim o peso dos alunos calouros seja absurdamente maior que o do conjunto do corpo docente.

A democracia é um regime político de virtudes inocultáveis. É o melhor regime possível para os cidadãos escolherem seus governantes. Mas as regras que se aplicam à forma de governo de uma nação devem aplicar-se às restantes instituições da sociedade? O democratismo se traduz, precisamente, na intenção de levar para as restantes instituições da sociedade o que vale para a escolha dos representantes políticos, transformando assim todas as relações de poder em relações políticas. Quando se pretende democratizar a família, por exemplo, se está querendo dizer que a “autoridade” deverá surgir da maioria (geralmente dos filhos), contra a minoria dos pais? Ser democrático implica também, por acaso, que na empresa mandem os empregados e, nas forças armadas, os soldados? E – lembremo-lo de novo – quem deve pilotar um avião? Um aluno poderia ser escolhido como reitor? A aplicação universal do princípio da democracia a todas as instâncias da sociedade, ao invés de aprofundar a mesma, leva a anarquia à sociedade como um todo. Ou leva à mediocracia, como já o denunciava Platão. Levaria ao esgotamento das forças da nação através da tomada de decisões por parte daqueles menos preparados para tomá-las (nas famílias, os filhos; nas escolas e universidades, os alunos; etc.).

Mas isto é precisamente o que parecem querer alguns dos que levantam a bandeira da autonomia, impedindo que a universidade contribua para as reformas que a sociedade precisa, e com a contribuição que só a universidade pode dar. É impossível não concordar com Mariano Grondona quando observa que o democratismo nas escolas e universidades levaria aos professores a ficarem reféns dos piores alunos. Por esse caminho, os melhores professores passariam a ser aqueles que dão as melhores notas e exigem menos dos alunos. O democratismo acabaria com a universidade porque colocaria os interesses corporativos acima dos acadêmicos. Na universidade, cada integrante vale de acordo com seus méritos no campo do conhecimento. No lugar onde se deve premiar o esforço e o rendimento não pode reger a democracia, senão a meritocracia. Todos os jovens que ingressam na universidade devem desfrutar de igualdade de oportunidades. A rigor, esse é o sentido íntimo da gratuidade da escola pública. Sendo esta gratuita, todos têm a mesma igualdade de oportunidades para desenvolver suas potencialidades. Mas os que desenvolvem melhor suas capacidades não poderiam nunca ser igualados àqueles que as desenvolvem menos, correndo-se o risco de produzir uma desmoralização crescente da vida acadêmica.

A universidade deveria ser mais democrática na hora de dar maiores chances aos alunos pobres para fazer um ensino médio de qualidade, a partir de políticas que a levem, por exemplo, a ter melhores e maiores colégios de aplicação. Do mesmo modo, a universidade deveria ser mais democrática na hora de ofertar as vagas para seus cursos, aumentando sensivelmente a proporção de vagas para cursos na área de ciência e tecnologia. No entanto, se a universidade quer cumprir sua função deverá privilegiar o principio meritocrático, tanto no seu vestibular, como na provisão de fundos para pesquisa, nas notas das disciplinas, nos concursos dos professores ou nas escolhas de suas autoridades. Evitando o democratismo, a universidade estaria se salvando dos fatores entrópicos que a perseguem. Estaria abrindo o caminho para as reformas que a sociedade precisa. A excelência e o reconhecimento do mérito são as portas para o futuro na época da sociedade da informação e do conhecimento. Se o democratismo nos faz esquecer nossas responsabilidades, a história, essa deusa impiedosa e meritocrática, haverá de passar a conta a nossos filhos e netos.

(publicado em FLORIPA TOTAL)